É comum haver a pergunta de analistas e de empresários se normas, geralmente ilegais, que não foram inicialmente impugnadas no edital podem ser questionadas posteriormente.
Ainda mais, após passar pela fase de impugnação, esse edital seria vinculativo e as eventuais irregularidades ou ilegalidades estariam todas convalidadas, ou seja, não seriam mais ilegalidades?
Pois bem. É isso que vamos te responder nesse artigo, com a seguinte organização:
1 - O que os editais falam?
2 - O que significa preclusão?
3 - Isso se estende para esfera judicial e controladora?
4 - É requisito obrigatório ter que impugnar ou recorrer antes de ir para o Poder Judiciário ou Tribunal de Contas?
5 - Dicas práticas.
1 - O que os editais falam?
É comum verificarmos nos editais uma espécie de termo de confissão ou de anuência com todas as cláusulas e exigências do edital após a fase de impugnação ou esclarecimento.
Geralmente é redigida, em negrito, assim:
"2.4. A simples participação neste processo implica na aceitação de todas as condições estabelecidas neste Instrumento e seus Anexos."
Essa redação advém da ideia geral de que o edital faz lei entre as partes. Mas de onde surgiu essa ideia?
O célebre professor Hely Lopes Meirelles, em seu livro "Direito Administrativo Brasileiro" (São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989; p. 243), disse: "O edital é a lei interna da licitação".
Essa frase foi repetida ao longo de 40 anos desde que foi dita pela primeira vez. Todavia, para quem não tem uma formação jurídica, essa afirmação pode levar a uma desconcertante e inverídica conclusão: que o edital está em pé de igualdade com a lei.
O Prof. Hely Lopes ao chamar o edital de "lei interna" estava apenas a dizer que aquelas são as "regras do jogo", mas não que estariam no mesmo nível da lei, esta foi uma força de expressão como tantas outras que fizeram sucesso nas obras do célebre professor. Mas é preciso ler o livro todo ou ter formação jurídica para compreender o alcance dessa frase.
Em direito, em linhas gerais, existe uma ordem hierárquica das leis: em primeiro lugar, vem a Constituição Federal, depois vem as Leis (ordinárias e complementares) e depois vem os Atos Administrativos (entre eles, o edital de licitação).
Todos os atos administrativos devem ser seguidos pois há o que se chama de auto-executoriedade e presunção relativa de legitimidade. Ou seja, os licitantes esperam que o edital esteja dentro da lei e mesmo que não tivesse a cláusula que dissesse que "A simples participação implica na aceitação de todas as condições estabelecidas neste Instrumento e seus Anexos.", o edital como ato administrativo já teria executoriedade.
Todavia, se esse edital contiver itens ou cláusulas que vão de encontro às leis ou a própria Constituição, devem ser anulados obrigatoriamente e o quanto antes.
Veja o que o próprio Hely Lopes Meirelles disse no mesmo livro, algumas páginas antes (p. 180):
"Desde que a Administração reconheça que praticou um ato contrário ao direito vigente, cumpre-lhe anulá-lo e quanto antes, para restabelecer a legalidade administrativa. Se o não fizer, poderá o interessado pedir ao Judiciário que verifique a ilegalidade do ato [um edital de licitação, por exemplo] e declare a sua invalidade, através da anulação".
2 - O que significa preclusão?
Preclusão é o efeito que se dá quando um licitante deixa o prazo de impugnação ou esclarecimento passar. Isso é uma premissa que vem do princípio que "O direito não atende aos que dormem" pois é preciso garantir o mínimo de segurança jurídica.
Não se pode conceber que se faça uma licitação onde os licitantes tenham o direito de reclamar no momento em que acharem que devem, do contrário, poderiam até mesmo os licitantes mal intencionados tentar "bloquear" um procedimento com recursos ou impugnações inválidas, se esse for o seu interesse privado.
Portanto, a cláusula exemplificativa que trouxe tem sua razão de ser justamente para garantir, no âmbito do procedimento licitatório, o mínimo de segurança jurídica, previsibilidade e celeridade.
Em palavras simples, se você perdeu o prazo para impugnar um item ou cláusula ilegal, isso não significa que a cláusula agora está "redimida" ou, como se diz em direito, "convalidada".
Significa que sobre esse assunto, naquela licitação específica, não se fala mais.
3 - Isso se estende para esfera judicial e Tribunal de Contas?
Agora é o caso de retomarmos a partir da citação do Hely Lopes Meirelles e de outros elementos importantes.
Caso a Administração não anule o item ou não reconheça a ilegalidade e o licitante ainda assim ingressa como participante do certame para não perder a oportunidade, isso não afasta dele o direito de buscar a justiça.
Em relação ao acesso ao Poder Judiciário a regra é Constitucional, portanto, nenhuma lei poderá limitar o seu acesso:
Art. 5º, XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito;
Em relação ao Tribunal de Contas, a regra também é Constitucional, mas obviamente se o assunto não disser respeito à esfera de atuação do tribunal, ele não irá reconhecer:
Art. 74, § 2º Qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato é parte legítima para, na forma da lei, denunciar irregularidades ou ilegalidades perante o Tribunal de Contas da União.
4 - É requisito obrigatório ter que impugnar ou recorrer antes de ir para o Poder Judiciário ou Tribunal de Contas?
Não. Como demonstrei acima, as regras são Constitucionais.
Especificamente ao Poder Judiciário, somente a própria Constituição poderia criar essa limitação. E de fato criou em algumas hipóteses, senão, veja-se:
a) Justiça Desportiva: o art. 217, § 1º, da Constituição Federal, exige o esgotamento da esfera administrativa para o ajuizamento de demanda judicial referente à disciplina e às competições desportivas;
b) Violação de Súmula Vinculante: De acordo com o art. 7º, § 1º, da Lei nº 11.417, de 2006, é preciso esgotar as vias administrativas antes de reclamação ao STF por ação ou omissão administrativa que viole súmula vinculante;
c) Habeas Data: Trata-se de entendimento jurisprudencial do STF. Há a necessidade de requerimento administrativo prévio sem o esgotamento das vias administrativas;
d) Benefícios Previdenciários: O STF decidiu, em sede de repercussão geral, que ações judiciais contra o INSS, para a concessão de benefícios previdenciários. necessitam de requerimento administrativo prévio, sem a necessidade do esgotamento das esferas administrativas, para que haja interesse de agir.
Portanto, não se aplica nenhuma exigência prévia de ter recorrido ou impugnado para o caso de Licitações e Contratos Administrativos.
Já em relação ao Tribunal de Contas, também não há essa exigência mas acresço que a ideia de atuação dos TCs é mais de o particular provocar uma auditoria naquela licitação, sendo muito comum de o Tribunal encontrar mais irregularidades do que aquelas que foram provocadas na denúncia ou representação.
5 - Dicas Práticas
Faça uma análise prévia do edital, de cada edital que participe. Não pule etapas. É normal o analista ou empresário passar batido por textos que parecem ser idênticos, mas uma análise item por item pode salvar uma discussão intensa ou proporcionar que você participe de uma licitação que, sem essa análise, talvez sua empresa estaria de fora.
Se você puder investir numa análise de edital profissional é bem mais interessante pois um bom profissional irá identificar pontos que são considerados ilegais pelos Tribunais de Contas e alertá-lo sobre a possibilidade de impugnação, mas do contrário invista nos estudos e acompanhe semanalmente as decisões do TCU para deixar seu olhar mais atento.
Não deixe de apresentar uma impugnação ou pedido de esclarecimento. Isso porque você evita de levar a discussão para a esfera judicial/controladora o que pode gerar um desgaste relacional e financeiro, pois a esfera judicial/controladora sempre custa mais e na maioria dos casos não vai parar o curso do processo licitatório.
Prof. Adiel Ferreira Jr
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