Texto-base para a palestra da Oficina Profissionalizante para os alunos da Uninassau Caxangá, sob o tema: "O Futuro do Direito do Consumidor: LGPD e o Novo Aspecto Consumerista, Direito do Investidor e a nova Lei de Consumidor de Serviços Públicos"
Há tempos que o Direito do Consumidor tem expandido suas fronteiras perante as novas realidades do mercado comercial e jurídico. Este ramo do direito não mais atende às realidades do comércio da época em que foi criado.
Desde que quando o Código de Defesa do Consumidor foi editado em 1990, tem sido amplamente discutido especialmente quando da edição do Código Civil em 2002 que admitiu mudanças que se tornaram ainda mais favoráveis aos consumidores.
Juntamente com a Lei da Ação Civil Pública de 1985 e com a edição de novas normas de tutela coletiva, como a Lei do Mandado de Segurança em 2009, o Código de Processo Civil de 2015 e a Lei do Mandado de Injunção em 2018, o CDC tomou uma proporção extremamente importante no cenário processual ancorando o que se convencionou chamar de Microssistema do Processo Coletivo.
Com a chegada forte da internet e das redes sociais, a publicidade e a propaganda (requisitos altamente regulados pelo CDC) ganharam novos aspectos.
Hoje é possível encontrar aplicativos, jogos e sites que não cobram absolutamente nada para sua utilização, chegando a pagar, algumas vezes, para que o consumidor os utilize em troca de seus dados pessoais.
Isso porque o serviço do aplicativo, o jogo ou a informação do site tornou-se secundário, de forma que a espetacular junção do “consumidor certo” à “publicidade certa” é o real produto.
Por essa razão, surgiu a necessidade da Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais, conhecida como LGPD, Lei nº 13.709 de 2018, para que a proteção constitucional do consumidor passasse a acompanhar os novos tempos que jamais poderiam ser previstos originalmente no CDC.
Por sua vez, uma área que atingia apenas pessoas jurídicas de médio e grande porte e pessoas físicas com altíssimo poder econômico, passou também a admitir o consumidor comum. Esta área é a do Mercado de Capitais.
Segundo o portal Invest News (https://investnews.com.br/financas/bolsa-brasileira-alcanca-a-marca-de-3-milhoes-de-investidores-pessoas-fisicas/), a B3 (Bolsa de Valores do Brasil) ultrapassou a marca de 3 milhões de investidores pessoas físicas, o que se justifica pela atual facilidade de investimento nas empresas cotadas a partir de centavos e sem cobrança de tarifas por parte das corretoras.
Sendo assim, o relacionamento do investidor-consumidor frente a esse mundo também passa a ser objeto de atenção do Direito Consumerista de modo que tem de a se tornar, do meu ponto de vista, uma das áreas de mais relevância para a advocacia nos próximos anos.
Em um outro plano, os serviços públicos também se renovaram com o passar dos anos e as normas relativas ao Direito do Consumidor de Serviços Públicos acabavam sendo confrontadas com outras normas relativas ao Direito Administrativo e Regulatório (à exemplo das instruções normativas), colocando a parte mais vulnerável em uma posição delicada.
Deste modo, foi imprescindível a edição da Lei dos Direitos do Usuário dos Serviços Públicos, Lei nº 13.460 de 2017 contendo princípios e normas gerais que vão se sobrepor às normas especiais que eventualmente possam colocar o consumidor em posição ainda mais vulnerável.
Antes precisa-se verificar que não se pretende trazer todos os direitos nem sequer comentar todas as possibilidades recentes que têm surgido no que chamei de “Futuro do Direito do Consumidor”, pois não caberia num simples artigo, mas o meu objetivo é trazer apontar os diplomas legais e a tendência do mercado jurídico frente a esse quesito.
Assim sendo, passamos à análise de alguns elementos básicos de proteção ao consumidor nestas áreas.
O Consumidor e a LGPD
A LGPD dispõe de quais são seus objetivos gerais e, de pronto, pode-se perceber a preocupação com a manutenção do regime jurídico consumerista, senão, veja-se:
Art. 2º A disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos:
I - o respeito à privacidade;
II - a autodeterminação informativa;
III - a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião;
IV - a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem;
V - o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação;
VI - a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e
VII - os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais.
Especificamente sobre os direitos do titular, dispõe o novo regimento:
Art. 17. Toda pessoa natural tem assegurada a titularidade de seus dados pessoais e garantidos os direitos fundamentais de liberdade, de intimidade e de privacidade, nos termos desta Lei.
Art. 18. O titular dos dados pessoais tem direito a obter do controlador, em relação aos dados do titular por ele tratados, a qualquer momento e mediante requisição:
I - confirmação da existência de tratamento;
II - acesso aos dados;
III - correção de dados incompletos, inexatos ou desatualizados;
IV - anonimização, bloqueio ou eliminação de dados desnecessários, excessivos ou tratados em desconformidade com o disposto nesta Lei;
V - portabilidade dos dados a outro fornecedor de serviço ou produto, mediante requisição expressa, de acordo com a regulamentação da autoridade nacional, observados os segredos comercial e industrial; (Redação dada pela Lei nº 13.853, de 2019) Vigência
VI - eliminação dos dados pessoais tratados com o consentimento do titular, exceto nas hipóteses previstas no art. 16 desta Lei;
VII - informação das entidades públicas e privadas com as quais o controlador realizou uso compartilhado de dados;
VIII - informação sobre a possibilidade de não fornecer consentimento e sobre as consequências da negativa;
IX - revogação do consentimento, nos termos do § 5º do art. 8º desta Lei.
As normas trazidas expõem o que podem ser cláusulas abusivas consideradas, assim, nulas de pleno direito tais como a manutenção de dados incorretos ou desnecessários no banco de dados da empresa, mediante simples requerimento.
O parágrafo primeiro do artigo 18 permite a reclamação perante a autoridade nacional prevista no Art. 55-A do diploma e o parágrafo oitavo dispõe que “O direito a que se refere o § 1º deste artigo também poderá ser exercido perante os organismos de defesa do consumidor” ampliando a atuação do Procon e de outros órgãos cuja missão visa a defesa do consumidor.
O Direito do Consumidor-Investidor
A lei que instituiu o Conselho Monetário Nacional e a Comissão de Valores Mobiliários instituiu objetivos que se coadunam com a defesa do consumidor-investidor, senão, veja-se:
Lei nº 6.385 Art . 4º O Conselho Monetário Nacional e a Comissão de Valores Mobiliários exercerão as atribuições previstas na lei para o fim de:
IV - proteger os titulares de valores mobiliários e os investidores do mercado contra:
a) emissões irregulares de valores mobiliários; [...]
V - evitar ou coibir modalidades de fraude ou manipulação destinadas a criar condições artificiais de demanda, oferta ou preço dos valores mobiliários negociados no mercado;
Em que pese isto, é motivo de discussão jurisprudencial a condição de consumidor do investidor. Isso porque, em algumas situações, se verifica que não é aplicável a condição de vulnerabilidade.
Vale dizer que existem, basicamente, três tipos de vulnerabilidade: técnica – conhecimento específico do sistema, jurídica – relativo às normas contratuais envolvidas, ou fática – detalhes não revelados ao consumidor que poderiam mudar sua liberdade de escolha.
Quanto à esse ponto o Superior Tribunal de Justiça decidiu, em suma, que quando se trata da relação Consumidor x Empresa cotada não se aplica o CDC por se tratar de uma relação típica do Direito Empresarial (títulos de crédito).
Por outro lado, existe a figura do “intermediário”, em outras palavras a “corretora” ou o “banco” e nesses casos, o tribunal vem entendendo pela aplicação do Código de Defesa do Consumidor.
Não apenas isso, mas a própria CVM, no âmbito de suas atribuições instituição a Instrução CVM, nº 505, segundo o qual:
Art. 32. O intermediário deve:
[...]
V – suprir seus clientes com informações sobre os produtos oferecidos e seus riscos;
VI – suprir seus clientes com informações referentes aos mecanismos de ressarcimento de prejuízos estabelecidos pelas entidades administradoras de mercado organizado, se for o caso;
Ou seja, o intermediário responde pelos riscos de uma indicação errada ou com informação insuficiente. O mercado de capitais é um mercado cujo risco é inerente, mas não significa que o intermediário está isento de informar abertamente tais situações, caso decida propor uma ação ou investimento.
Por seu lado, Instrução CVM nº 539, especifica ainda mais o fato de se ofertar investimentos aos consumidores, ao propor que tal indicação é ilegal sem que se verifique o perfil do cliente.
Art. 1º As pessoas habilitadas a atuar como integrantes do sistema de distribuição e os consultores de valores mobiliários não podem recomendar produtos, realizar operações ou prestar serviços sem que verifiquem sua adequação ao perfil do cliente.
Dessa forma, pode-se perceber a importância do estudo de normas voltadas para o consumidor-investidor perante o novo mercado que tem crescido amplamente no Brasil.
O Usuário dos Serviços Públicos.
Os serviços públicos no Brasil são prestados, sempre que possível, pela iniciativa privada por delegação do poder público ou diretamente pela Administração Pública.
A Lei nº 13.460/2021 estabelece a sua aplicação em ambos os casos, senão, veja:
Art. 1º Esta Lei estabelece normas básicas para participação, proteção e defesa dos direitos do usuário dos serviços públicos prestados direta ou indiretamente pela administração pública.
§ 3º Aplica-se subsidiariamente o disposto nesta Lei aos serviços públicos prestados por particular.
Por sua vez, também estabelece direitos básicos do usuário de serviços públicos:
Art. 6º São direitos básicos do usuário:
I - participação no acompanhamento da prestação e na avaliação dos serviços;
II - obtenção e utilização dos serviços com liberdade de escolha entre os meios oferecidos e sem discriminação;
III - acesso e obtenção de informações relativas à sua pessoa constantes de registros ou bancos de dados, observado o disposto no inciso X do caput do art. 5º da Constituição Federal e na Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011 ;
IV - proteção de suas informações pessoais, nos termos da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011 ;
V - atuação integrada e sistêmica na expedição de atestados, certidões e documentos comprobatórios de regularidade; e
VI - obtenção de informações precisas e de fácil acesso nos locais de prestação do serviço, assim como sua disponibilização na internet, especialmente sobre:
a) horário de funcionamento das unidades administrativas;
b) serviços prestados pelo órgão ou entidade, sua localização exata e a indicação do setor responsável pelo atendimento ao público;
c) acesso ao agente público ou ao órgão encarregado de receber manifestações;
d) situação da tramitação dos processos administrativos em que figure como interessado; e
e) valor das taxas e tarifas cobradas pela prestação dos serviços, contendo informações para a compreensão exata da extensão do serviço prestado.
VII – comunicação prévia da suspensão da prestação de serviço. (Incluído pela Lei nº 14.015, de 2020)
Parágrafo único. É vedada a suspensão da prestação de serviço em virtude de inadimplemento por parte do usuário que se inicie na sexta-feira, no sábado ou no domingo, bem como em feriado ou no dia anterior a feriado. (Incluído pela Lei nº 14.015, de 2020)
Interessante notar que os incisos III e IV se coadunam muito bem com o conceito de consumidor frente à LGPD, de modo que é possível ao intérprete fazer uma combinação das legislações quando se tratar de serviços públicos.
Outro ponto de destaque é a alteração de 2020, bastante pertinente ao seu tempo, que é o direito à comunicação prévia da suspensão da prestação do serviço e a vedação de suspensão por inadimplemento desde a sexta-feira ou dia anterior ao feriado.
Pode-se questionar também: esta lei substitui o CDC? De modo algum. O intérprete deve fazer uma correlação entre as normas para fins de complementação e não de exclusão, uma vez que o próprio texto legal dispõe a respeito:
Art. 1º, § 2º A aplicação desta Lei não afasta a necessidade de cumprimento do disposto:
[...]
II - na Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990, quando caracterizada relação de consumo.
Conclusão.
Frente a toda essa introdução, é possível ver que existe uma ampla margem de estudo e proteção ao consumidor no direito brasileiro.
Obviamente, repita-se, esse artigo é apenas introdutório e visa trazer novos caminhos ao leitor para planejar seus estudos e acompanhar as mudanças feitas no novo perfil de consumidor presente na nossa sociedade.
De um modo geral, o Direito do Consumidor não é um óbice à livre iniciativa, mas um braço desta uma vez que garantido a qualidade ao consumidor o próprio mercado se torna mais competitivo e os setores não precisarão se preocupar com a péssima imagem que um concorrente desleal pode passar.
Por isso, o profissional que visa a área do Direito do Consumidor deve estar preparado para conhecer os aspectos materiais e processuais que vão muito além do bom e velho CDC para instruir a si mesmo e a seus clientes.
Clientes instruídos reconhecerão violações aos seus direitos e disso resultarão contratos e um mar de oportunidades para essa ampliação do mercado.
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